Por entre paredes, portas, janelas e frestas na pintura japonesa
Em consonância com a atual exposição da Japan House São Paulo 'WINDOWOLOGY– Estudo de janelas no Japão', centrada no estudo sobre janelas, discutimos aqui o significado de suas representações na pintura japonesa. Do ponto de vista estrito, e em um sentido comum para várias culturas, janelas são compreendidas como aberturas (e fechamentos) em meio a paredes ou tetos para ventilar, iluminar, proteger, contemplar. Este artigo vai abordar a alusão, interconexão, inserção espacial e poética tornadas possíveis, sobretudo pelo olhar, que perpassa planos espaciais ou temporais - ou ambos.
O curador da exposição, Taro Igarashi, afirma que “nas pinturas japonesas, não há muitas representações de janelas”¹, fato assertivo no que se refere ao conceito mais corrente. Entretanto, o curador também declara: “a arquitetura japonesa é construída com colunas-e-vigas”, resultando que, como preenchimento entre umas e outras, várias estruturas foram utilizadas: pesadas janelas/portas basculantes com treliças (shitomido 蔀戸) para evitar ventos e chuvas típicos de monções; divisórias internas ou externas, leves (shōji 障子, “janela corrediça”) ou mais densas (fusuma 襖, “porta corrediça”), que preenchem os espaços entre as colunas; cortinados (heimaku 閉幕); persianas (sudare 簾). É preciso prestar atenção especialmente ao caráter provisório e movediço, que amplia espaços conforme ocasiões requeiram.
“Ver entre frestas”
Nas pinturas em biombos e nos rolos de pintura de Narrativas de Genji (Genji monogatari, início do século XI), Livro do travesseiro (Makura-no sōshi, início do século XI) e de origens maravilhosas de templos (Shigisan engi emaki, século XII), encontram-se representadas cenas em que constam incontáveis desses elementos, os quais ainda não são propriamente “janelas”, mas já possibilitam jogos de mostrar e ocultar, especialmente pelo recurso pictórico da retirada dos tetos (de fato, o único elemento fixo nas construções, além das colunas-e-vigas) e da perspectiva aérea. “Ver entre frestas” (kaima-mi 垣間見) é atividade preferida do brilhante Genji e seus diletos nobres da corte.
Frestas em parede foram introduzidas no Japão somente no século XV, com o zen-budismo, sendo a construção mais célebre a do templo Ginkaku-ji, sob a égide de Yoshimasa Ashikaga: katōmado (花頭窓・華頭窓: “janela com flor [de lótus] no topo”; 火灯窓・瓦灯窓: “janela leve”). Com as salas da cerimônia do chá, as shitajimado 下地窓(“janela com material de fundo”) se tornam correntes também em outros ambientes de diferentes categorias de pessoas e fazem sua aparição em pinturas e incontáveis estampas ukiyo-e e livros ilustrados xilografados. Na área de prazeres de Yoshiwara, inovadora é a janela de treliça vertical de madeira (kōshi mado 格子窓), que abriga gueixas e cortesãs em molduras num jogo de ver, ser visto, mostrar, esconder, oferecer, negar, espiar.
Janelas como símbolos de ocultamento e exibição
Para além de elementos fundamentais na moradia, enquanto frestas físicas, janelas são também símbolos de ocultamento e exibição qual molduras de vistas sazonais; se olhos podem ser entendidos como “janelas da alma”, muitas nuvens em biombos folheados a ouro se tornam “paredes” que abrigam “janelas” representando os usos e costumes das gentes nipônicas nos séculos XVI e XVII, em procedimentos alusivos típico da linguagem verbal para a visual.
Arredondadas, retangulares ou em círculos perfeitos, suas formas permeiam significados simbólicos em poéticas geométricas, esgueirando-se até da funcionalidade própria para se tornar puro ornamento lúdico, como uma exígua casa de chá composta de treze janelas.
Com o advento das janelas de estilos ocidentais em fins do século XIX, e de novos materiais de construção (tijolo, cimento, concreto, vidro, aço), novos papéis surgem. Com o fechamento imposto pelo ar condicionado, apontam Philippe Bonnin e Masatsugu Nishida², a “abertura intrínseca e generalizada da morada japonesa parece hoje minada”, ainda que certa permeabilidade continue existindo, principalmente longe dos grandes centros, onde janelas, portas, paredes e frestas se abrem a jardins, vizinhanças, vilas.
O vidro nos edifícios urbanos, sobretudo, passa a desempenhar papel protagonista que permite a visão mas nega o vento ou, como na obra do arquiteto Ryue Nishizawa³, duas grandes janelas ovais desenhadas em uma forma de grande gota encontram-se sempre abertas às intempéries, bichos, insetos e sons, para abrigar a instalação Matrix de Rei Naito, no Museu de Arte Teshima, na ilha de Naoshima.
Referências:
¹ IGARASHI Taro, Taro Igarashi Laboratory, The History of Windows (Mado no rekishi 窓の歴史), https://madoken.jp/en
²BONNIN Philippe E NISHIDA Masatasugu (Vocabulaire de la spatialité japonaise, p. 308-311)
³https://benesse-artsite.jp/en/art/teshima-artmuseum.html
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Sobre Madalena Hashimoto Cordaro:
Madalena Hashimoto Cordaro lecionou literatura japonesa na FFLCH-USP de 1990 a 2016 e atualmente está filiada ao Programa de Poéticas Visuais da ECA-USP.
Entre suas principais exposições encontram-se: Transpacific Borderlands - The Art of Japanese Diaspora in Lima, Los Angeles, Mexico City, and São Paulo (2017), Identidades e identificações (2016), Das dez mil faces (2008).
É autora dos livros: A Erótica Japonesa na Pintura e na Escritura dos Séculos XVII a XIX (São Paulo: Edusp, 2018, 2 vols) e Ukiyo-e Pinturas do Mundo Flutuante (São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2008, 2 vols), além de assinar traduções, artigos e capítulos.
Veja também:
+ A concepção da exposição 'WINDOWOLOGY– Estudo de janelas no Japão'