Artigos

A genealogia da joia como expressão artística no Japão

As funções dos adornos estão entrelaçadas de forma complexa e uma de suas faces é o aspecto artístico - e a joalheria contemporânea é aquela que enfatiza exatamente o aspecto artístico das peças.

Compartilhe

De abril a junho de 2022, está em cartaz na Japan House São Paulo a exposição [ím]pares, uma mostra sobre design contemporâneo de joias japonesas. A escritora especialista em joias, Makiko Akiyama traz conteúdos sobre as funções dos adornos e suas complexas faces ao revelar detalhes e curiosidades do aspecto artístico na joalheria contemporânea.

A genealogia da joia como expressão artística no Japão

“Aquilo que é colocado no corpo ou na roupa com o objetivo de adornar, enfeitar. Anel, broche, etc. Acessório.” Essa é uma das definições de “adorno corporal” que encontrei em meu dicionário1. De acordo com a mesma fonte, “adornar” significa “adicionar algum elemento para elevar o valor de algo (fazendo com que pareça mais belo do que em sua essência)”.

Alguns dizem que os objetos utilizados no corpo em rituais religiosos e festivais não são enfeites e, portanto, não podem ser chamados de “adornos corporais”. Mas muitos desses itens ritualísticos são raros e belos e podemos afirmar que, no fim das contas, também acabam por ter a função de adornar.

Inclusive, nem é preciso explicar que os adornos corporais são utilizados não só como enfeites, mas também como símbolos. Como podemos ver, as funções desses adornos estão entrelaçadas de forma complexa e uma de suas faces é o aspecto artístico. A joalheria contemporânea é aquela que enfatiza exatamente o aspecto artístico das peças. Mas como esse ramo se desenvolveu no Japão? Antes de descobrirmos, voltemos um pouco no tempo para percorrer a história dos adornos japoneses.

No Japão pré-histórico, existiu uma cultura de adornos corporais muito rica. Foram encontrados acessórios de cabelo, pentes, colares, brincos e braceletes dessa época feitos de pedras, conchas, dentes, ossos, chifres e outros materiais naturais. Esses objetos eram utilizados em rituais e também distinguiam grupos familiares e simbolizavam poder. Com a transição da cultura de caça e coleta para a cultura do cultivo de arroz, também houve uma transformação nesses itens e adereços de vidro ou de metal também passaram a ser utilizados.

Na Antiguidade, a propagação do budismo foi acompanhada pelo declínio da cultura dos adornos no Japão. Várias teorias explicam esse fenômeno, mas uma delas indica que a função de amuleto desses adornos corporais passou a ser exercida pelos objetos cerimoniais budistas. Além disso, há uma grande influência da mudança no vestuário. Em 603, foi promulgado o primeiro decreto sobre vestuário no Japão que ficou conhecido como o “Sistema de Doze Chapéus e Níveis”. Esse sistema substituiu as coroas de metal por chapéus de cores diferentes para representar os diferentes níveis dos membros da corte. No período seguinte, no contexto da próspera cultura da corte Heian, as mulheres da nobreza tinham os cabelos longos soltos e vestiam o jūnihitoe2. Pela aparência chamativa do próprio vestuário, não havia muito espaço para os acessórios.

Junto a isso, uma parte dos objetos utilitários, como os leques, vão ganhando um caráter de adorno cada vez maior e alguns deles começam a ser utilizados somente como acessórios para enfeitar. Essa tendência é perceptível principalmente nos objetos que exaltavam a artesania e os materiais e que eram utilizados por homens, como o obi (faixa utilizada para prender o quimono), além de bolsas e espadas feitas em pedra, marfim ou com a técnica raden. No Período Kamakura, com a formação da sociedade dominada pela classe guerreira, iniciou-se a produção de armaduras com alto nível de sofisticação. Esse modo de unir objetos utilitários com acessórios decorativos se enraizou nesse período e seguiu persistindo em épocas posteriores. No Período Muromachi (1336-1573), nasceu uma cultura que valorizava as diferentes peças e acessórios da espada, que passaram a ser fabricadas uma a uma por grandes artesãos e com a aplicação de técnicas sofisticadas.

Da Antiguidade à Idade Média, flores e plantas também passaram a ser utilizadas como adornos. Nos rituais, as flores colocadas nos chapéus eram chamadas de uzu, kazashi ou hikage no kazura e, às vezes, flores artificiais feitas em metal ou fios de tecido eram utilizadas. O tipo de flor variava de acordo com o status social da pessoa.

No Período Azuchi-Momoyama (1568-1600), graças ao contato com as nações europeias, foram trazidos anéis, broches e pingentes ao Japão. Já no Período Edo (1603-1868), iniciou-se os anos de isolamento e a influência estrangeira tornou-se menos intensa. Os acessórios que merecem menção nesse período são os de cabelo, como os pentes, os kōgai e os kanzashi. Nessa época, as mulheres prendiam seus longos cabelos e esses objetos cumpriam a função de fixá-los até que começaram a surgir acessórios feitos especialmente para enfeitar os penteados. Eles eram manufaturados com diversos materiais, como madeira, chifres de animais, marfim, corais, casco de tartaruga e metais, aplicando-se vários designs e técnicas sofisticadas.

Nishiki-e de Keisai Eisen, artista de ukiyo-e do período Edo (1792-1848). Ano:1820-1830. O cabelo da mulher é enfeitado por vários ornamentos.

Acervo: Rijksmuseum Amsterdam. Domínio público.

Objetos como o inrō, o kami-ire e o hakoseko, que eram como bolsas de mão ou carteiras, assim como netsuke e ojime em formato de contas, utilizados para fixar esses objetos na faixa do quimono, eram bem estilizados e feitos de materiais luxuosos, como couros e tecidos caros, além de corais. Combinar esses elementos exigia um bom gosto apurado. O costume de pendurar objetos na faixa do quimono já não existe hoje, mas,historicamente, é possível observar como esses itens utilitários cumpriam o papel de adornos corporais antes da introdução das joias de estilo ocidental no Japão3.

Inro, ojime e netsuke | Inro: laca preta, incrustação de madrepérola e maki-e; ojime: ágata; netsuke: marfim.Século 19 (período Edo). Inro é uma pequena caixa utilizada por homens para guardar remédios ou pequenos itens. Pendurava-se pela cintura. Ojime é uma peça redonda usada para apertar e afrouxar os cordões da tampa do inro. Netsuke era utilizado para fixar cordão do inro ao obi.

Acervo: The Metropolitan Museum of Art.

Nesse período, floresceu também a cultura do tōsōgu, as partes da espada manufaturadas por artesãos. Tratavam-se de peças metálicas constituintes da espada, bem como objetos para fixar cada parte e que também refletiam fortemente as preferências de seu portador, o qual exibia toda a técnica do artesão. Além dos metais comuns como ouro, prata e bronze, utilizavam-se ligas de diversos metais, denominadas irogane. Por meio de técnicas sofisticadas de chōkin, os desenhos no metal feitos com cinzel, era possível representar diferentes padronagens, com temas que iam do tradicional kachōfūgetsu (flores, pássaros, vento e lua) a temáticas religiosas.

Ornamentos para espada Tsuba/ Fuchibashira (os quatro itens de cima): assinatura de Masayoshi Ishiguro; século 18 ou 19 (período Edo). Kozuka/Kōgai (os dois itens de baixo): assinatura de Naomasa Yanagawa; século 18 (período Edo). Tsuba é uma proteção com formato circular que protege a mão que empunha a espada. Fuchibashira são peças metálicas encaixadas nas duas pontas do cabo da espada. Kozuka refere-se à pequena faca anexa à espada ou ao cabo dela. Kōgai é um item de higiene pessoal utilizado para coçar a cabeça e a orelha. Acervo: Tokyo Fuji Art Museum. Domínio público.

Com o fim do isolamento e o início do Período Meiji, a política, a cultura e os costumes japoneses sofreram grandes transformações - a cultura dos adornos corporais não seria uma exceção. O Decreto de Abolição da Espada fez muitos artesãos perderem sua ocupação. Entretanto, eles passaram a produzir acessórios ocidentais (adiante denominados como joias4), como anéis e botões, utilizando as técnicas tradicionais. Um dos grandes artesãos do fim do xogunato e do Período Meiji é Natsuo Kanō (1828-1898), que foi um dos primeiros professores a lecionar na Tokyo Academy of Fine Arts (Tōkyō Bijutsu Gakkō). Os princípios dessa escola foram transmitidos à sua sucessora, a atual Tokyo University of the Arts. Assim, tivemos simultaneamente a preservação de certas tradições e a introdução de materiais, técnicas e estilos ocidentais. Já no Período Taishō, produziram-se peças extraordinárias de estilo Art Déco, com o uso de materiais como a platina, diamante, pérola e ônix. Os enfeites de cabelo, que tiveram seu auge no Período Edo, continuaram a ser utilizados mesmo depois da difusão da vestimenta ocidental.

Moeda de prata de Natsuo Kanō. Moeda de 1 iene do perído Meiji, baseado no design de Natsuo Kanō.

Imagem editado de: CC BY-SA 3.0 e As6673/Own Work (alteração da resolução de imagem).

A joalheria japonesa, que vinha tendo um desenvolvimento próspero, foi obrigada a interromper suas atividades devido ao início da Guerra Sino-Japonesa e da Segunda Guerra Mundial. No entanto, no período pós-guerra, a joalheria japonesa teve seu verdadeiro desabrochar ao se tornar uma forma de expressão livre e individual. Uma das figuras centrais dessa tendência foi Yasuhiko Hishida (1927-1981), o qual, além de artista de joias, foi um dos membros fundadores da UR Accessories Association (que se tornaria a UR Jewelry Association), em 1956, e da Japan Jewellery Designers Association, em 1964, trabalhando na divulgação e no desenvolvimento desse novo gênero de joia também a nível institucional.

Dando ênfase à expressão através da forma, a Japan Jewellery Designers Association utilizou metais e pedras preciosas e, por meio da criação de formas originais, almejou a elevação da joalheria ao status de arte. Nesse contexto, o Japão estaria lado a lado da joalheria modernista europeia, mas, para acompanhar os seus passos, a associação trabalhou nos bastidores para promover exposições internacionais a fim de que se absorvessem as tendências de fora.

Na ocasião da 1973 International Jewellery Arts Exhibition, o curador e escritor Ralph Turner (1936-2017) apontou que o Japão sofria grande influência da joalheria europeia que não olhava para a própria cultura. No entanto, levantou o nome de Yasuki Hiramatsu como uma exceção. Hiramatsu tinha como particularidade a expressão através das texturas e formas geométricas bem definidas. Ao manusear placas de metal como se fossem papel, o artista criou peças com as quais destacava uma expressão suave e menos fria, diferente das impressões transmitidas por um metal. Hiramatsu também serviu de guia à próxima geração ao lecionar na Tokyo University of the Arts.

Yasuki Hiramatsu. Anel. Material: ouro. Ano: desconhecido. Fornecimento de imagem: gallery deux poissons.

Em 1984, foi realizada a exposição “Contemporary Jewellery: the Americas, Australia, Europe and Japan”. O evento de grande escala contou com 150 artistas de 22 países, exibindo peças consideradas gigantescas para os parâmetros do mundo das joias, obras conceituais e feitas de diversos materiais.

O historiador de arte Toyojirō Hida interpreta a exposição como um ponto de virada na história da joalheria no Japão. No período em que foi realizado o evento, nos anos 1980, acontecia uma rápida expansão nas vertentes de expressão japonesas. A exposição permitiu a interpretação e assimilação das formas de expressão conceituais vistas no ocidente e posicionou a joalheria como parte das artes e artesanato do próprio país. Como consequência, iniciou-se uma tendência de peças esculturais que valorizavam as significações da obra, além de uma diversificação notável de materiais. Assim, começaram a nascer obras de forte característica japonesa e que levavam em consideração a cultura do próprio país.

Nesse contexto, o artista que se desafiou desconstruindo o conceito de joia foi Kazuhiro Itō (1948-1997). Sendo um cristão, Itō produziu obras que expressavam ideias e padronagens do cristianismo e foi um dos poucos artistas japoneses que tratou de temas religiosos. Itō não só atuou energicamente como artista no Japão e no exterior, como foi professor na escola técnica de Tóquio Hiko Mizuno College of Jewelry, orientando os alunos com uma metodologia que enfatizava as ideias, algo incomum em uma escola técnica. Além disso, atuou na promoção do intercâmbio internacional no âmbito do ensino ao planejar exposições conjuntas com instituições educacionais da Europa.

Ainda hoje, essa escola segue funcionando como um hub, ocupando a posição de elo entre o Japão e o exterior. É muito simbólico o fato de Mikiko Minewaki, artista que cumpre papel central nessa escola, ter sido destacada por Hida no início dos anos 2000 como uma das artistas da nova geração que fazia o movimento de migração para a arte conceitual. Minewaki não questiona a razão da existência das joias, pelo contrário, encara-as de frente e produz peças através de um método simples obtido por meio do corte de objetos utilitários.

Mikiko Minewaki: “Mobile”, bracelete. Material: alumínio e smartfone. Ano: 2021. A artista produz joias a partir de plásticos provenientes de produtos como brinquedos e artigos de papelaria, além de bonecos de pelúcia.

Fornecimento de imagem: Mikiko Minewaki.

Na realidade, o movimento conceitual vai desaparecendo antes do início dos anos 2000 e, após esse período, surgem cada vez mais artistas que definem de forma franca o significado e papel das joias, buscando inspirações no dia a dia, sendo Minewaki a maior representante desse grupo. Recentemente, Mari Ishikawa e Etsuko Sonobe apresentaram coleções que têm como tema a pandemia da Covid-19. Também não são poucos os artistas que promovem uma renovação utilizando técnicas tradicionais como a do urushi, a laca japonesa, junto a um senso estético contemporâneo5.

Uma das particularidades do olhar do artista de joias sobre o cotidiano está no fato de que ele não investiga a fundo a estranheza que sentimos no dia a dia para problematizar. Ou seja, o artista se limita a uma interpretação estética, confiando ao público a tarefa de apreender o problema. Poucas obras fazem afirmações fortes e diretas sobre mensagens sociais e políticas. Isso não indica um desinteresse por essas questões, mas prevalece o pensamento de que a joia que vai junto ao corpo não é um meio apropriado para se transmitir uma mensagem social.

Não são poucos os artistas que têm a expectativa de criar oportunidades de comunicação por meio de suas peças. Kako Shimoonoda, por exemplo, cria joias que conduzem as pessoas ao diálogo por ter palavras como temática. Seu método consiste na utilização repetitiva de palavras, como se a peça entoasse um mantra. Mas chamar essas joias de “peças conversacionais”, para criar uma frase de efeito, não seria o suficiente para qualificar esse trabalho que possui a sinceridade de um grito. Pode ser precipitado definir essa sinceridade como uma característica da nova geração (Shimoonoda6 está na casa dos 20), mas em vez de criar um sentido no ato de utilizar certa peça por um tempo limitado, como era o caso das peças conceituais, nos últimos anos, muitos artistas como Shimoonoda têm, em seus temas, o pressuposto do uso da peça na vida cotidiana6.

Kako Shimoonoda, “Hyori ittai – vida e morte”, pingente. Material: acrílico e poliéster. Ano: 2021. Do lado esquerdo, a obra apresenta o kanji “死” que significa morte; já do lado direito, “生”, que significa vida. Os dois ideogramas se encontram e se sobrepõem no centro. O cotidiano como fonte de ideias e o cotidiano como destino da peça: é assim que a joalheria contemporânea tem diminuído a distância com o dia a dia. Apesar de essa ser uma consequência natural na busca pela essência das joias, isso não significa que elas são, de fato, adoradas por todos. Pode ser que o motivo esteja na pouca visibilidade da joalheria contemporânea, mas há, além disso, um fator mais fundamental: a pouca compatibilidade entre o senso estético ao se apreciar arte e artesanato e o senso estético para os adornos que fazem parte do cotidiano.

Fornecimento de imagem: Kako Shimoonoda.

Podemos dizer que a joia contemporânea é um elemento estranho em relação aos acessórios e à moda vestida pelas pessoas. Usar uma peça estranha na rua é se tornar um estranho em meio aos outros e, por isso, é necessário coragem para usá-la. Mas se a joia contemporânea não continuar a manter essa estranheza em sua essência, não conseguirá mostrar seu verdadeiro valor. Em outras palavras, é preciso que ela se torne um estranho possível de ser aceito pelas pessoas.

Mas as bases para essa possibilidade vão se estruturando aos poucos. Por exemplo, vemos mudanças na visão que as pessoas têm da moda. Nos últimos anos, temos presenciado uma considerável desconstrução de padrões na moda e formas mais livres de se vestir, as quais não ficam presas ao gênero e às normas sociais pré-estabelecidas, estão se difundindo rapidamente. Aos poucos, a moda está deixando de ser algo que nos subordina a padrões para se transformar em algo que desconstrói padrões e que permite que cada um possa manifestar a sua própria identidade.

Vemos também uma mudança no conceito do que é o luxo. No “Relatório sobre o futuro da moda7, que foi publicado em maio de 2022 e fala sobre as perspectivas da cultura do vestuário e acessórios japoneses, a “diversidade de culturas próprias transmitidas regionalmente (local)” e a “singularidade baseada na criatividade do indivíduo (arte)” são levantadas como novos valores do conceito de luxo.

Como exemplo de trabalho que incorpora a cultura tradicional local, temos o “Access New Jewellery”, idealizado pelo designer Kenmei Nagaoka. O projeto ocorreu entre 2011 e 2016 e foi uma tentativa de revitalização das técnicas e tradições das indústrias de diferentes localidades através das joias e cujos resultados foram mostrados ao público em uma exposição. Em 2002, Simon Fraser, da Crafts Council, sugeriu que a joalheria tinha a possibilidade de se tornar o meio do Japão encontrar um significado atual para as técnicas tradicionais e pode-se considerar que a Access New Jewellery foi uma iniciativa que tornou isso realidade.

Etsuko Sonobe, “Patition”, broche. Material: ouro 20K e quartzo. Ano: 2021. Obra desenvolvida após a disseminação do COVID-19. É a representação visual da separação invisível entre a vida durante a pandemia e os dias normais que ainda estão por vir.

Fornecimento de imagem: gallery deux poisons.

Ao mesmo tempo em que nascia uma joalheria de alto nível artístico, surgiu uma oposição em relação ao conceito de luxo até então estabelecido. Pensando nisso, ver que o luxo novamente se aproxima e faz concessões para com as joias pode parecer um pouco contraditório. Mas é certo que os valores da sociedade e os valores da joalheria contemporânea estão se aproximando.

No contexto da moda, é difícil falar sobre a joalheria que nasceu em oposição à ideia de ser apenas um acessório subordinado à moda e sinto até que há uma certa resistência em discutir o assunto. No entanto, seja qual for o tipo de joia, se o artista deseja mostrar o verdadeiro valor da peça no cotidiano, não é possível ignorar completamente a moda e a função do acessório.

Ao mesmo tempo, gostaria de enfatizar principalmente o efeito que as joias têm sobre nossos sentimentos. O exemplo que darei é simples. Pode parecer uma maneira exagerada de me expressar, mas, para mim, a diferença entre as joias que usamos como parte de um look e as que são feitas por artistas está em poder sentir que eu existo, que estou aqui.

Usar uma joia que expressa uma ideia com a qual você se identifica é uma forma de autoafirmação. Quando nos vemos no espelho usando essa joia, quando nos lembramos, por meio do toque, que ela está ali, conseguimos confirmar e afirmar nossa própria existência frágil que parece estar sendo engolida e esquecida no meio da multidão.

Essa é uma percepção minha e é possível que não se aplique a outras pessoas. De certa forma, isso é mais do que natural. Pois, ao entrar em contato com as joias que estão fora dos padrões pré-estabelecidos, suas possibilidades são diferentes para cada um. Quando as ideias e a estética do artista entram em ressonância com o indivíduo, não há dúvidas de que essa joia brilhará ainda mais forte, emanando uma luz única. Com essa reflexão, encerro esse texto e gostaria de sugerir a possibilidade de um mundo com várias dessas luzes, que seguem brilhando e sendo influenciadas umas pelas outras.


1 Oitava edição do dicionário japonês Shin Meikai Kokugo Jiten.

2 A vestimenta das mulheres adultas da corte. Era composta de várias camadas de tecidos sobrepostas e o tamanho diferente das mangas permitia que cada uma das cores das diversas camadas ficasse aparente, tornando o jūnihitoe uma vestimenta extremamente sofisticada e elaborada.

3 Há um declínio no uso do netsuke com a adoção da vestimenta ocidental, mas hoje existe uma cultura do netsuke contemporâneo cultivada por artistas, colecionadores e adoradores dessa peça como objeto artístico e artesanal.

4 Originalmente, a palavra sōshingu (装身具; adornos corporais) é utilizada para peças produzidas em qualquer localidade, sem restrições. Mas neste texto, chamamos de “joia” os adornos corporais de estilo ocidental que se estabeleceu no Japão a partir do período Meiji, enquanto distinguimos peças produzidas em outras épocas chamando-as diretamente de “adornos corporais”.

5 Artistas como esses têm seus trabalhos expostos principalmente em galerias. Entre as galerias especializadas em joias, temos a “gallery deux poissons”, inaugurada em 2003 em Tóquio e a “gallery C.A.J.”, inaugurada em 2006 em Quioto. No entanto, o número de galerias é ínfimo em relação à quantidade de artistas, por isso muitos optam por exibir suas obras em galerias de artesanato japonês, conhecido como kôgei. Já nas galerias de arte, vemos uma diminuição cada vez maior de exposições de joalheria contemporânea, sendo a retrospectiva de Otto Künzli em 2015 a última delas. Não podemos ignorar o impacto da interrupção de exposições nos museus de arte, principalmente internacionais, pois isso dificulta a compreensão da situação atual, do significado das joias nos dias de hoje e de uma visão geral da posição em que se encontra o Japão em relação ao mundo.

6 Buscar significado no uso de uma peça e buscar significado no uso de uma peça no cotidiano são ideias parecidas, mas diferentes. Para redefinir a joia na dimensão cotidiana, é preciso rever o conceito da “usabilidade da joia”. É muito comum que se traga esse conceito à discussão quando se fala do significado ou do motivo da existência a joia como expressão artística. No entanto, sua definição ainda não é clara, e varia da “possibilidade de uma peça ser usada no cotidiano” a “nível de conforto ao utilizar uma peça no dia a dia”. Ou seja, esse conceito tem sido utilizado como convém, de acordo com o contexto.

7 Relatório que abrange, em 200 páginas, o conteúdo da reunião do comitê de especialistas realizada pelo Ministério da Economia, Comércio e Indústria do Japão em 2021, contendo assuntos como a perspectiva para a indústria da moda, modelos de negócios, cultura, sistema e tecnologia. https://bit.ly/3MEZQcL (Acesso em 23 de maio de 2022).

--

Sobre Makiko Akiyama:

Escritora especialista em joias. Formada no curso de Joalheria Contemporânea do Hiko Mizuno College of Jewelry (atualmente está cursando o “Fashion Art Accessory”). Trabalhou como professora na mesma escola, mas migrou posteriormente para a área de tradução e escrita. Contribuiu com textos para revistas e sites japoneses e internacionais. Coautora em “Spring/Summer 16_green gold” (Schmuck2, 2017) e “Jiro Kamata: VOICES” (Arnoldsche Art Publishers, 2019). Palestras: “Joalheria contemporânea e ornamentos” (2020), para o Grupo de Pesquisa de Ornamentos da Kyoto Seika University; “Conhecimentos básicos de Joalheria Contemporânea” (2021) no Contemporary Jewellery Symposium Tokyo.

Referências bibliográficas

  • Hiroshi Tsuyuki, “Nihon sōshingu-shi juerii to akusesarii no ayumi”, Bijutsu shuppan-sha, 2008.
  • Akio Seki, “Nihon no juerii 100-nen Watashitachi no sōshingu 1850-1950”, Bijutsu shuppan-sha, 2005.
  • Takashi Hamamoto, “Nazotoki akusesarii ga kieta nihon-shi”, Kobunsha, 2004
  • Hideji Harunari, “Rekishi hakkutsu 4 Kodai no Yosooi”, Kodansha, 1997.
  • Toyojirō Hida, “Kōgei no Ryōbun Kōgei ni wa seikatsu kanjō ga fūin sareteiru”, Bigaku Shuppan, 2006.
  • Takahiko Mizuno, “Sekai no juerii ātisuto 1”, Bijutsu shuppan-sha. “Kyō no juerii Sekai no dōkō”, The National Museum of Modern Art, Kyoto, 1984.
  • “Nihon no sakka 30-nin ni your kontenporarii juerii”, The National Museum of Modern Art, Tokyo, 1995.
  • “Katachi no essensu Hiramatsu Yasuki no juerii”, The National Museum of Modern Art, Tokyo, 2008.
  • Naoko Tanabe, “NIPPON VISION4 accessories access new jewellery Atarashii juerii e no akusesu”, Bijutsu shuppan-sha, 2011.
  • “47 accessories 2: 47 todōfuken no akusesarii”, D&DEPERTMENT PROJECT, 2016. Simon Fraser, Toyojiro Hida. 2003Contemporary Japanese Jewelry. London: Merrell Publishers Limited.
  • Liesbeth den Besten. 2011.On Jewellery: A Compendium of International Contemporary Art Jewellery. Stuttgart: ARNOLDSCHE Art Publishers
  • Ralph Turner. 1975.Contemporary jewelry: A critical assessment 1945-75. New York: Van Nostrand Reinhold Co.

 

Glossário:

Hakoseko - tradicional bolsa ou carteira dobrável japonesa Inrō - na escrita japonesa (印籠), esse vocábulo significa, literalmente, cesta de carimbo, funcionalidade à qual sua origem está associada. Com o passar do tempo, esses objetos foram adaptados para guardar remédios, tabaco, confeitos e outros pequenos itens.
Kami-ire - tradicional bolsa de mão ou carteira japonesa.
Kanzashi - tradicionais ornamentos de cabelo japoneses, como pentes.
Kōgai - tradicionais ornamentos de cabelo japoneses, palitos e grampos.
Netsuke - pequenas peças entalhadas geralmente em marfim, ossos e chifres de animais ou metais usadas para segurar o o inrō e penduradas no obi (faixa de quimono).
Ojime - conta decorativa colocada em cordão entre o netsuke e o sagemono para abrir e fechar o inrō.
Raden - técnica decorativa japonesa utilizada em laca e artigos de madeira. Este método recorta partes de conchas como a madrepérola e o abalone e as insere em superfícies esculpidas de laca ou madeira, como um revestimento.

--

Leia também:

Fundição por Cera de Abelha A Técnica Cloisonné Japonesa Moderna Arte em Laca

Saiba mais sobre a exposição de joias:

[ím]pares
Voltar ao topo